segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Querela


Aquele domingo nasceu com cara de sábado, ou era a própria memória corporal de cada um, que gritava à consciência que tanta extravagância não era cristã. A despeito da chuva que levara até a moral dos mais puritanos, ainda restavam, imponentes, as garrafas de bebida, como que para zombar das bacantes donas-de-casa-respeitáveis.
A primeira a acordar não conteve um grito de horror ao perceber aquele emaranhado de corpos, em que não se podia distinguir o principiar e o findar de cada um. O cheiro dos fluidos ainda inebriava o ar e denunciava o quanto foram livres.
Pensou em quão absurda e vergonhosa era tal situação. Enxergou o marido com o rosto entre os seios de outra, e viu suas coxas pousadas entre as coxas do cunhado. Pensou nas horas que estavam por vir e em como lidariam com suas memórias. Tentou desvencilhar-se dos que estavam próximos e sair sem ser vista, para depois, quem sabe, inocentar-se e cobrar dos outros a conta de tanta falta de pudor. Não pôde, o novelo era por demais bem arranjado e, aos poucos, todos acordaram. Invariavelmente, arregalaram os olhos e levaram a mão ao rosto. O sol invadia o sobrado e prestigiava os corpos nus, relaxados e macios.
Olharam ao redor, as portas escancaradas, os cães refocilavam-se em meio à lama e os galos há muito fizeram sua contribuição ao amanhecer. Levantaram-se sem ruídos, cataram dignamente suas vestes. Uma vez mais, olharam-se mutuamente, como que para gravar o rosto de cada um e, posteriormente, rememorá-los na solidão de suas virtudes. Enfim, deram-se as costas e dirigiram-se a seus lares, desviando-se das garrafas e repetindo para suas consciências que tanta felicidade não era permitida.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Confesso que vivi, amei e ainda não cresci

Quando eu era pequena,



Eu comia doce de leite escondida.
Brincava com os soldadinhos do pé de carambola da vizinha, que eu chamava de Vó.
Tinha uma fazenda de piolhos.
Peguei quebrante e meu pai tirou.
Calçava o tamanco da mamãe e desfilava em Paris.
Meu pai me ensinou a ler antes da alfabetização e eu queria ser poeta.
Quando meu irmão nasceu, eu fiquei no canto.
Quando minha irmã nasceu, eu virei babá.
Ouvia as histórias de assombração que a Socorro contava e, à noite, dormia de luz acesa.
Gritei que acreditava em fadas, pra que a Fada Sininho sobrevivesse.
Tomei uma Bezetacil.
Chorei na hora de soprar a vela no meu aniversário de um ano.
Fui à benzedeira, ela me molhou toda e ainda soprou no meu ouvido.
Dançava as músicas do É o Tchan.
Queria ser a Power Ranger rosa, porque ela era a namorada do Jason.
Cansei da mamãe dizendo que os desenhos do tempo dela eram melhores.
Meu pai dizia que seu eu tomasse café demais, eu ia ficar preta.
A mãe dizia que a gente só queria comer o que não tinha.
Tirava par ou ímpar com meu irmão pra decidir que sexo teria o bebê que a mamãe estava esperando.
Tinha uma tia da minha idade e a gente tinha um “Clube das Pestinhas”.
Achava que a rosa do Pequeno Príncipe não merecia ele.
Assistia a TV Colosso e tentava me sacudir igual à Priscila.
Morria de medo de a Big Loura aparecer no banheiro.
Ia à Frei Serafim em época de Natal e ficava absolutamente deslumbrada, depois a mãe levava a gente pra tomar sorvete naquela sorveteria mentirosa que não tinha nenhum elefantinho.
Gravei uma fita cantando músicas dos Mamonas Assassinas.
Tinha pena do “Pato aqui, pato acolá”, que tantas fez que foi parar na panela .
Chamava a empregada de Tia Nastácia e pedia pra ela fazer bolinhos de chuva.
Fiz, com meu irmão e a tia da minha idade, uma gangorra com uma tábua velha e uma churrasqueira no meio.
Adorava o ratinho do Castelo Rá-tim-bum (Tchau preguiça, tchau sujeira!).
Meu irmão fez uma locadora de videogame com um Super Nitendo e uma fita do Mário e não dividiu o lucro comigo.
Assistia Maria do Bairro.
Os meninos da escola me chamavam de Olívia Palito.
Eu ganhei medalha de Honra ao Mérito.
Ria quando a professora falava de menstruação.
Brinquei de Cai no Poço.
Adorava cantar Aquarela.
Não fiz Balé, mas cantei num coral.
Não tive patins.
Brincava de “trisca-e-fica”.
Fiz um pacto de sangue.
Lambia o cascão da ferida.
Chorava quando passavam Merthiolate em mim.
Pintava a unha com corretivo.
Brincava que eu era cantora e as bonecas eram a plateia de um estádio lotado.
Eu tive um coelho e, quando ele morreu, eu não via mais sentido em estar no mundo.
Eu tive um casal de jabotis e eles tiveram um filhote.
Apaixonei-me perdidamente e queria casar e ter filhos com o menino.

Queria crescer logo.
E ainda não terminei de crescer.

É, eu tenho uma experienciazinha.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Um amor assim: delicado!

(Hoje eu acordei de tal forma, que se me mandassem redigir um documento oficial, eu escreveria uma carta de amor. Aproveitando o ensejo,e antes que eu volte a ser bruta, vou descrever como é o amor que eu quero)



Tem um quê de infância no sorriso, mas muita maturidade na conversa e nas atitudes.

Ama todos os animais e acha que eu sou a tigresa da música do Caetano.

Beija-me sem necessariamente pegar no meu bumbum.

Ele é tão massa, que meu nome vai pro SPC, só porque eu quis comprar um vestido lindo pra sair com ele.

Fica comigo mesmo que eu esteja “naqueles dias”.

É fofo na sorveteria e quente na cama.

Liga no dia seguinte.

Adora meus amigos.

Vai me assistir no teatro e diz o que achou com sinceridade.

Vai comigo ao show do Vavá Ribeiro sem achar que é meloso demais.

Presenteia-me com chocolates em dias comuns, por favor!

Quando eu acho que estou gorda, ele diz que precisa trocar o espelho, porque está com defeito.

Não sabe o que é celulite.

Diz que a minha cachorrinha é linda.

Vai à minha casa e a gente assiste a um filme sentado no sofá, depois ele vai embora, porque eu quero descansar.

Oferece-me uma única flor e acha que o perfume dela é horroroso em relação ao meu.

Diz que eu tenho os olhos de “cigana oblíqua dissimulada”, igual à Capitu.

Diz que se eu quiser conhecer outros caras, tudo bem. Mas não sente vontade de conhecer nenhuma outra mulher.

Usa um perfume bem gostoso no pé da orelha.

Acha que eu sou engraçada e o meu sorriso é lindo.

Me ensina a dançar um forró aperriado, com aquelas rodadas que levantam o vestido.

Vai comigo ao Parque da Cidade e a gente faz um piquenique igual aos filmes, e nesse dia não haverá formigas por lá.

Acha que os meus seios são mais bonitos que os da Penélope Cruz!

Acha que as pernas da Angélica são bonitas, mas as minhas são muito mais. Vixe, nem se compara!

Sabe que eu canto muito melhor que a Elis.

Não fuma, mas me acompanha na cerveja.

Quando estou triste, ele me abraça e não fala nada.

E me ama!




terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O tempo e outras poéticas políticas


Este vai para os amigos do Projeto CriAção:


A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer”, já musicou Antunes. “A coisa mais antiga que existe nessa vida é o jovem aprendendo com o idoso”, isso sou eu quem diz. “A coisa mais gostosa e gratificante é jovem e idoso aprendendo junto”, isso quem diz são os idosos e os jovens que participam do Projeto CriAção.

Mais do que um grupo de jovens que resolveu fazer uma “boa ação”, o Projeto CriAção é um sacudir de poeira de um pessoal que resolveu olhar ao redor, pôr uma mão no coração e outra na consciência e perceber que o mundo não se resume só à faculdade, trabalho, família, amigos, namoro e festa.
Objetivamente, trata-se de um grupo de jovens que realiza trabalhos de educação, promoção da saúde, conscientização dos direitos, espiritualidade, atividades artísticas e lúdicas, entre outras, com um grupo de idosos da Comunidade Parque Jurema, tão afastada quanto acolhedora. Fugindo do assistencialismo social tão em voga hoje em dia, o grupo insiste em um acompanhamento continuado e realiza encontros na comunidade pelo menos uma vez ao mês. 

Pronto, a parte objetiva e necessária do artigo já foi feita. Se você acha que qualquer doçura é pieguice, pare a leitura por aqui. Agora falemos do que é subjetivo e belo, das impressões que temos ao entrar no Salão Paroquial da igrejinha da comunidade e iniciar mais uma troca de experiências. Sim, porque isso, apesar de jornalisticamente desnecessário, é o que aumenta a nossa obstinação em continuarmos. 

Como não sorrir ao lembrar a alegria em vê-los dançando na sessão de Capoterapia? E aquela timidez quase inabalável nas primeiras dinâmicas? E a revolta ao contarem de situações em que seus direitos foram desrespeitados? E a satisfação da Dona Ester ao nos ensinar a fazer seu famoso bolo de milho? E o orgulho que eles sentiam ao mostrar os artesanatos que faziam? E a Dona Francisquinha, ali é arretada! Lembram-se do Seu Alexandre tão entusiasmado no teclado que se esqueceu de lanchar? Vocês já perceberam que a Dona Deolinda observa a todos os outros com atenção científica? E que a Dona Francisca Braga senta sempre de pernas cruzadas e põe a mão no queixo, curva um pouco a coluna e olha sempre pra quem tá falando com um pequeno sorriso aberto, e que ela sempre faz questão de dizer que as reuniões são ótimas? Que a Dona Maria Sampaio e o marido parecem dois doidinhos? E que não há nada no mundo que se compare ao amor da Dona Ester e do Seu Alexandre?

Pois é, meus amigos, todos nós sabemos que a vida é corrida, e o dia só tem vinte e quatro horas, e segunda tem seminário, e hoje tem apresentação, e ontem foi aniversário da prima e eu cheguei tarde, e lá em casa tem uma pilha de louças pra lavar, e que se dane porque eu quero é dormir. Mas quando o cansaço e o desânimo chegam, e eu mesma já tive várias idas e vindas, talvez ajude a gente lembrar o que foi feito durante esse quase um ano: das amizades construídas, daquela perda irreparável e dos ganhos em sabedoria e serenidade. 

Ao infinito e além!!!

O que eu mudaria no mundo?


Eu acabaria com a miséria e redistribuiria a riqueza.
Prenderia todos os corruptos e eles cumpririam a pena até o final.
Eu faria com que lei e justiça fossem sempre concordantes.
Solucionaria o aquecimento global e acabaria com o acúmulo de lixo.
Resolveria os conflitos no Oriente Médio.
Eu colocaria uma pedra no sapato do Bush e obrigaria o Mubarak a renunciar logo.
Eu ressuscitaria Bach, Elis e Saramago e faria com que todo latino americano lesse Cem anos de solidão e todo brasileiro lesse Guimarães Rosa.
As Igrejas não enganariam mais seus fiéis e as religiões não brigariam entre si.
Transformaria o povo brasileiro em inconformado com a própria realidade e o otimismo dele duraria até depois do carnaval.
Eu faria com que o Steve Jobs e a Dona Terezinha lá da esquina ganhassem o mesmo salário e faria também com que o reajuste salarial dos parlamentares brasileiros fosse o mesmo da Dona Terezinha.
O SUS funcionaria direitinho e acabaria com essa palhaçada de plano de saúde pago pelo Estado.
Os idosos e as crianças seriam respeitados e toda e qualquer minoria também.
A Universidade pública seria realmente pública e acessível a todos e os universitários teriam de entender o que significa estar em uma universidade pública.
A UFPI teria de volta aquele pé de manga do CCN, debaixo do qual a gente estudava Química Orgânica, se estressava, chorava, namorava e se confraternizava depois do almoço.
O R.U. não teria mais filas e alimentaria nossos sonhos com a bandeja mais limpinha.
Teresina seria menos quente e seria realmente uma cidade verde.
Eu colocaria na cabeça de quem-quer-que-fosse que melhorar o trânsito de uma cidade significa mais melhorar o transporte público do que construir pontes e viadutos para mais automóveis particulares passarem.
O Validuaté tocaria todos os dias e a gente teria grana pra ir ao show depois da aula.
O teatro, a dança, a música e toda a arte piauiense seriam prestigiadas pelos próprios piauienses como merecem.
Mas como eu não sou a mulher-maravlha, e tampouco quero fugir com o superman, eu posso apenas mudar a mim mesma: consumir menos, me doar mais, lutar pelos direitos civis e exigir SEMPRE que sejam respeitados, estudar e ser uma boa professora, estudar e ser uma artista decente, ajudar mais a mamãe pra que ela se estresse menos, abraçar o papai quando ele estiver cheio de dívidas e dizer que vai dar tudo certo, ser cúmplice dos meus irmãos, socorrer os meus amigos sempre, ser menos maravilhosa e arrasar menos corações.

E você, o que faria para mudar o mundo?